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Ter ou Ser? A Lógica do Consumo e a Troca do Nosso Tempo de Vida

Atualizado: 4 de set.

No programa Chega Mais Vale, Ana Clara Lollobrigida (CRP 06/220360) explora o real valor das nossas escolhas cotidianas.

Vivemos em uma sociedade onde consumir não significa apenas comprar aquilo que precisamos para viver, como comida ou roupas básicas. Consumir, hoje, está profundamente ligado à forma como construímos nossa identidade e como somos vistos pelos outros. Muitas vezes, somos levados a acreditar que o que temos define quem somos. Essa ideia de “ter para ser” está enraizada em nossa cultura e cria uma pressão constante por novidades, status e reconhecimento social.¹


Mas será que consumir tanto nos aproxima da felicidade? Ou será que estamos trocando algo ainda mais valioso — nosso próprio tempo de vida — por objetos que rapidamente perdem o brilho?²


O que é consumo, afinal?


Consumo não é apenas um ato individual de compra. Ele pode ser entendido como um processo social, que envolve o acesso a bens, serviços, experiências e até desejos. Ou seja, não se trata só de satisfazer necessidades básicas, mas também de expressar quem somos, como queremos ser vistos e a que grupo desejamos pertencer.³

Por exemplo: o estilo de roupa que usamos, a música que ouvimos ou o celular que carregamos no bolso não são apenas escolhas práticas. Eles comunicam algo sobre nós, sobre nossa identidade e até sobre nosso valor social.


Consumo e Neuropsicologia: o que acontece no cérebro?


O ato de comprar não é apenas uma prática social ou econômica: ele também mobiliza circuitos profundos do cérebro ligados ao prazer, à recompensa e à tomada de decisão. Cada vez que uma pessoa consome algo, especialmente quando esse consumo está ligado a um desejo simbólico (status, identidade, pertencimento), ocorre a liberação de dopamina no sistema de recompensa cerebral. Esse neurotransmissor é o mesmo envolvido em experiências prazerosas como comer, se apaixonar ou ouvir música.


Assim, comprar pode provocar uma sensação imediata de alívio e bem-estar, ainda que passageira. Esse ciclo prazer–compra–dopamina é explorado pelo marketing, que não vende apenas produtos, mas gatilhos emocionais.Propagandas, como as da Coca-Cola, associam o consumo à felicidade, união familiar e momentos de celebração, ativando a memória afetiva e reforçando a expectativa de prazer futuro.


Um pouco de história


Historicamente, o consumo era visto de forma negativa: estava associado ao luxo, ao pecado e restrito às elites. Só no século XVII ocorreu a chamada Revolução do Consumo, quando a relação das pessoas com os bens materiais começou a mudar. A posse de objetos deixou de ser algo exclusivo de poucos e passou a se espalhar como prática social mais ampla.

A partir daí, o consumo foi se tornando parte central da vida cotidiana e, no século XX, consolidou-se a chamada sociedade de consumo.


Da sociedade de produtores à sociedade de consumidores


O sociólogo Zygmunt Bauman (2008) explica que, durante muito tempo, vivíamos em uma sociedade de produtores. Isso significava que o foco estava no trabalho, na segurança e na estabilidade.


Com o tempo, porém, passamos a viver em uma sociedade de consumidores, em que a lógica mudou: não basta trabalhar e produzir, é preciso desejar e consumir constantemente. Nessa nova lógica, nossa identidade é moldada mais pelo que compramos do que pelo que fazemos.


É aí que surgem as pressões por marcas específicas, objetos da moda e estilos de vida vendidos como “ideais”. O tênis de determinada marca, o carro novo, o celular de última geração deixam de ser apenas utilidades e passam a ser símbolos de status e aceitação social.


O papel do marketing: vender desejos, não produtos


O marketing é um dos principais motores dessa engrenagem. Mais do que mostrar produtos, ele cria desejos e molda sonhos coletivos.


Para isso, utiliza algumas estratégias bem conhecidas:


  • Associação emocional: ligar um produto a sentimentos como felicidade, amor ou sucesso.

  • Storytelling: contar histórias envolventes que fazem o consumidor se enxergar na situação.

  • Escassez e urgência: frases como “últimas unidades” ou “só hoje” despertam o medo de perder uma oportunidade.

  • Repetição: quanto mais vezes somos expostos a uma marca, mais natural ela se torna em nossa vida.


Um exemplo clássico é a Coca-Cola. Em suas propagandas de Natal, o refrigerante não aparece apenas como uma bebida. Ele é mostrado como um ingrediente essencial da união familiar, da felicidade e da celebração. O que se vende não é o sabor, mas um estilo de vida.¹⁰


Dinheiro é tempo de vida


Aqui está um ponto crucial: dinheiro nada mais é do que troca de tempo de vida.¹¹


Cada vez que compramos algo, estamos pagando com horas de trabalho. Um produto de R$500, por exemplo, pode representar vários dias inteiros de esforço.


E o problema é que, quanto mais consumimos, mais precisamos trabalhar. Isso significa menos tempo para descansar, cuidar da saúde, conviver com a família ou simplesmente aproveitar a vida. O resultado é sobrecarga, estresse e, muitas vezes, um vazio existencial.


Karl Marx (1867) já havia falado sobre essa alienação: quando trabalhamos apenas para sustentar um ciclo de produção e consumo, perdemos o controle sobre o nosso próprio tempo.¹²

Jean Baudrillard (1970) reforça que, na sociedade moderna, os objetos não são valorizados pela sua utilidade, mas como signos de prestígio.¹³

E, como lembra Bauman, vivemos em um mundo “líquido”, onde tudo é descartável: produtos, relações e até experiências.

O ciclo vicioso: desejo → trabalho → vazio → consumo


Esse sistema gera um ciclo que parece infinito:


  1. Desejamos algo novo (influenciados por propagandas, redes sociais, status).

  2. Trabalhamos mais para conseguir comprar.

  3. Temos menos tempo para viver outras áreas da vida.

  4. Surge um vazio, que tentamos preencher com novas compras.


E assim, seguimos em busca de uma felicidade que nunca se concretiza totalmente.¹⁴


Quando o consumo vira doença?


O consumo saudável se caracteriza por escolhas conscientes, ligadas a necessidades reais e desejos ponderados. Mas ele pode se tornar patológico quando:


  • passa a ser usado como único recurso de regulação emocional, uma forma de aliviar ansiedade, tristeza ou vazio;

  • perde o critério de necessidade, virando um comportamento automático;

  • gera prejuízos financeiros, familiares e sociais, sem que a pessoa consiga interromper o ciclo.


Nesse ponto, falamos de Transtorno de Compra Compulsiva (Oniomania), já reconhecido na literatura clínica como uma condição ligada à impulsividade, ansiedade e déficit no controle inibitório do cérebro.¹⁵


Ana Clara Lollobrigida em bate-papo de TV no canal SBT, com faixa na tela sobre saúde financeira e dicas para cuidar do bolso e do emocional.
Bate-papo no Chega Mais com Ana Clara Lollobrigida: como manter as finanças e o emocional equilibrados, sem dívidas.

Qual transtorno mental pode ser provocado pela compulsão de compra?


A compra compulsiva pode estar relacionada a ou mesmo desencadear:


  • Transtornos de Ansiedade (uso da compra como fuga da angústia).

  • Transtorno Depressivo (padrão de consumo para tentar preencher vazio e baixa autoestima).

  • Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) (quando a compra surge como ritual de alívio da tensão).

  • Transtornos por Uso de Substâncias / Comportamentos Aditivos (a lógica é semelhante à do vício em jogos, álcool ou drogas: busca incessante de recompensa dopaminérgica).

Quais são as implicações práticas do vício em compra?


O vício em compra traz consequências graves, como:


  • endividamento e comprometimento da vida financeira;

  • culpa e vergonha, que podem alimentar ciclos de ansiedade e depressão;

  • conflitos familiares e sociais, pelo impacto do consumo descontrolado;

  • dificuldade de foco em outros aspectos da vida, já que a energia psíquica se volta para o próximo ato de consumo.


Na prática, o consumo compulsivo escraviza o indivíduo ao mercado, reduzindo sua autonomia e sua liberdade de escolha.

Como resistir à lógica do consumo


Questionar essa lógica não significa rejeitar totalmente o consumo — afinal, ele faz parte da vida. Mas podemos aprender a diferenciá-lo entre necessidade real e desejo fabricado. Algumas estratégias ajudam:


  • Refletir antes de comprar: eu realmente preciso disso ou é impulso?

  • Pensar em tempo, não só em dinheiro: quantas horas de vida esse produto custa? Vale a pena?

  • Valorizar experiências em vez de coisas: memórias duram mais do que objetos.

  • Definir prioridades pessoais: alinhar escolhas ao que realmente importa para você — saúde, tempo livre, convivência.

  • Praticar o consumo consciente: reutilizar, compartilhar, pensar no impacto ambiental e social.

  • Enxergar além da propaganda: lembrar que as marcas vendem estilos de vida idealizados, não apenas produtos.


Conclusão


A sociedade de consumo nos convida, a todo momento, a acreditar que seremos mais felizes se tivermos mais. Mas, no fundo, o que está em jogo é o nosso tempo de vida, gasto em longas jornadas de trabalho para sustentar desejos que nunca se esgotam.


Romper com essa lógica não significa viver sem consumo, mas sim resgatar nossa autonomia diante dela. Quando paramos de nos definir pelo que compramos, abrimos espaço para aquilo que realmente importa: relações autênticas, tempo de qualidade, saúde, descanso e experiências que não têm preço.


No fim das contas, a grande pergunta não é “quanto posso comprar?”, mas sim:


👉 O que estou trocando da minha vida para consumir isso?







1 comentário

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CIRCE L S
03 de set.
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O tema é muito nescessário e foi desenvolvido com maestria , parabéns Ana Clara .

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